quarta-feira, 6 de abril de 2011

'Não me Abandone Jamais" usa ficção científica em drama

Distopia do longa é um subterfúgio para um drama intimista, para uma história humanista

O tempo pode ser o futuro ou o passado. O lugar pode ser a Inglaterra que conhecemos, ou um outro país. E os personagens podem ser humanos. Mas tudo soa muito estranho no melancólico drama Não me Abandone Jamais, de Mark Romanek, baseado no brilhante romance do inglês Kazuo Ishiguro.



Aqui, tanto o filme quanto a obra original, na verdade, têm mais a ver com Charles Dickens do que com George Orwell - apesar do clima de futuro distópico. Isso porque o longa de Romanek (Retratos de uma Obsessão) não é uma fabula de tons políticos como 1984.
Nele, a distopia é um subterfúgio para um drama intimista, para uma história humanista. Os três jovens do filme, abandonados em num colégio interno, lembram os órfãos de destino infeliz e muita provação dos romances de Dickens.
Eles são Kathy (Carey Mulligan, deEducação), Tommy (Andrew Garfield, de A Rede Social) e Ruth (Keira Knightley, de Amor Extremo), que moram e estudam em Hailsham, uma escola relativamente progressista, mas bastante rígida.
Seriam adolescentes normais, não fosse um fato que é o centro de suas vida: o sacrifício é o seu destino, numa sociedade que lembra qualquer ditadura e, ao mesmo tempo, ecoa muito o nosso tempo. Esses jovens deveriam aceitar o seu futuro com a cabeça baixa, curvando-se àquilo que lhes está reservado.
Kathy, Tommy e Ruth envolvem-se num triângulo amoroso destinado a ser trágico, dadas as perspectivas limitadas de futuro para todos eles. A narrativa constrói-se de forma lenta e cumulativa. Quando a revelação essencial da história vem à tona é como se "Não me Abandone Jamais" fosse uma ficção científica - mas não é. Os elementos desse gênero são usados para investigar os dramas humanos desses personagens, especialmente o amor e o destino.
Ruth toma uma decisão egoísta. Acredita, por causa de rumores, que um possível envolvimento com Tommy poderá poupar os dois daquilo a que se destinam. Suas ações, no entanto, irão refletir-se no futuro, quando poderá ser tarde demais para ela reparar seus danos.
Como Os Vestígios do Dia, outro longa baseado num livro de Ishiguro, este é um filme em que o que não se diz conta mais do que aquilo que é dito. É uma história que se constrói lentamente em cima de seus personagens, que desconhecem estar de mãos atadas, incapacitados de alterar aquilo que lhes é destinado. Nesse sentido, são quase personagens de tragédia grega que, quando aceitam sua maldição, a encaram de cabeça erguida, até na hora de sua execução.
Assistidos por guardiões, entre eles a Srta. Emily (Charlotte Rampling, A Duquesa), os jovens moradores de Hailsham crescem como crianças normais - brincam, aprendem, brigam, se apaixonam. Por isso mesmo, é grande o horror quando se descobre quem são essas crianças e porque elas existem.
Um dos maiores prazeres de ler ou ver Não me Abandone Jamais deriva do trabalho de detetive que a obra pede do público, juntando as peças do quebra-cabeças.
Ao final, questionando a humanidade de seus personagens, Não me Abandone Jamais põe em dúvida a nossa própria natureza e o resultado da ganância do homem. É uma história sobre horrores, mas também sobre amor e afeição - tudo aquilo que pode englobar a experiência humana. 

(Por Alysson Oliveira, do Cineweb - 17 de março de 2011 | 15h 33)

 

NÃO ME ABANDONE JAMAIS (Never Let Me Go, EUA, 2010, drama, 103 min.). De Mark Romanek, com Carey Mulligan, Andrew Garfield, Keira Knightley e Charlotte Rampling. Estreia sexta (18/3).

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